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O Bicho da Boca

O Bicho da Boca foi um texto apresentado dentro de uma lavandaria escura e húmida no NOVO SEF, o Centro de Estudantes abandonado que fez parte do espectáculo BOWING BACK. Fala da língua e da boca enquanto lugares estrangeiros, onde entra o mundo inteiro e se transportam geografias distantes. Foi acompanhado pelo canto da Leonor Arnaut, membro da banda Chão Maior.

O BICHO DA BOCA

Estamos dentro da boca. Essa zona húmida no interior da vossa cara. A boca é um ponto de passagem, esconderijo. Tem lugares, regiões e quartos. Esta é uma antiga lavandaria de línguas-não maternas. Está abandonada. Nos tanques, esfregavam-se os sotaques. Do outro lado deste muro está a máquina de secar lágrimas. Nesta tábua alisava-se o ênfase imperfeito e no fio estendiam-se os vocábulos. Esteve aqui pendurada a palavra MÃE. A palavra CHÃO secou e molhou e secou e molhou e secou. Aqui esteve a palavra PÓ e OSSO e LENTO e GRAVE. O lixo era para erros de tradução e as prateleiras um arquivo de palavras obsoletas, em cativeiro. Este quarto é um lugar da boca que a língua evita. Mal o visita. Há mofo e desconforto. Ainda pairam palavras no limiar da sombra. Entrem. Conseguem encontrar o caminho para cá pela vossa boca? Hão-de ver as escadas, o corredor e a porta até esta lavandaria de línguas não-maternas. Aqui estão os Himalaias. Vieram dentro das bocas. Nos sons, letreiros e nomes que não param de chegar. Os Himalaias deslocam-se pelas ruas e praças, em corpos que os trazem enrolados nas línguas e palavras. Do fundo das gargantas aparece a ponta do Evereste e o recorte das planícies da China. A boca sempre foi lugar estrangeiro.

Amritsar Jalandar Jalandar Faisalabad Faisalabad Multan Multan Jaipur Jaipur Kerala Kerala Patan

Todos os nomes: bem-vindos. Aqui há espaço. Transportamos o longe, e a miragem, e multidões dentro da cara. Aqui há céus, cidades, deuses e abismos. Aqui estão nomes à espera de ser ditos. Aqui é um campo aberto e abóbada celeste. Cá dentro há montanhas, pântanos, receios e fronteiras. Sons que assustam. Aqui é o outro lado do mundo.

Jagjeet Manpreet Manpreet Rohit Rohit Karan Karan Rajendra Rajendra Shoaib Shoaib Khalil

Nomes por inventar. Nomes que custam, ameaçam. Nomes em contra-luz. Aqui dentro há espaço para o engano, embate, aqui há guerras e violência, vandalismo, contrabando. Aqui há morada e residência, viajante que passa ou fica um tempo, direito ao sotaque e ao silêncio. Aqui há risco e lapso, eco e erro, aqui entra um século inteiro de repente. E agora que chegámos e aqui estamos, dá-se início ao processo de reflorestação da boca. Terrenos baldios replantados. A flora da língua intacta e mestiça. Vamos povoá-la com mais nomes e bagagens. Convidamos todos os sons incómodos a entrar, sons tão distantes que viajaram de uma boca a outra até à vossa. Revirem a língua, torçam-na, desenterrem palavras tapadas há anos, gerações. Experimentem sílabas difíceis aí no escuro. Outras vidas e futuros. Nessas bocas, neste quarto, há espaço. Nas dobras da língua e no acaso, vivem todos os sons graves, forasteiros, os pós e sopros e gritos e florestas, e quedas e risos e corpos mais distantes. Os Himalaias aí dentro, à espera.

Fotografias de: João Mariano - 1000 Olhos