Pelas ruas e campos ouve-se Hindi, Punjabi, Português, Nepalês, Tailandês, Chinês, Urdu, Inglês, Bangla. O Alentejo é o solo de todas estas línguas e sotaques. A comunicação faz curvas e contracurvas em tentativas de compreensão. Havia sempre uma conversa paralela entre os participantes, dinâmicas ilegíveis para nós. Alunos falavam em Hindi, homens do Bangladesh e do Punjab entravam em conflito aceso nas suas línguas. Rajendra trabalhou ao nosso lado enquanto tradutor e mediador. Uma noite, na Junta de Freguesia de São Teotónio, a Madalena explicava o propósito do espectáculo a um grupo de 20 homens e Rajendra ia traduzindo para Hindi. Enquanto a Madalena dizia frases curtas, as traduções de Rajendra não acabavam. Os seus olhos brilhavam, gesticulava. Não sabíamos exactamente o que dizia, mas quase todos os homens se juntaram ao projecto. Houve inúmeras incompreensões. Na visita a uma estufa de agricultura intensiva, um homem do Nepal perguntou à Inês qual era a sua casta. Ela percebeu que ele lhe perguntava se o seu apelido era Castro, e respondeu "Eu sou Sousa!". Sousa passou a ser, para ele, o nome de uma casta em Portugal. Com o Daniel Wang falávamos através do Tradutor da Google. Assim que começámos a usar essa ferramenta o Daniel passou a escrever frases elaboradas, cheias de poesia e pensamentos invulgares. Em São Teotónio havia uma casa apenas com homens Sikh, entre os 40 e os 80 anos de idade. Nenhum deles falava português ou inglês e o tradutor que os acompanhava, na verdade, também não. A nossa comunicação baseava-se na troca de presentes. Eles convidavam-nos para beber ‘tchai’, nós oferecíamos blazers e camisas brancas. Eles ofereciam ‘roti', nós tirávamos belas fotografias de grupo. A relação foi crescendo até ao espectáculo, em que esses homens subiram ao telhado da sua casa e se mostraram ao público. A navegação por essa comunicação foi difícil. Até ao último momento ninguém se compreendia. Todos os dias dizíamos para estarem prontos, com os blazers, camisas e turbantes vestidos às 19h30 para subirem ao telhado enquanto o público passava, e todas as noites, com o público a chegar, batíamos à porta de sua casa e eles abriam-na ainda de roupão. Tínhamos tradutores nos grupos de WhatsApp. O Rajendra passava as nossas mensagens para Hindi e logo recebia respostas, enquanto cruzávamos os dedos para que todos tivessem entendido e aparecessem nos ensaios à hora combinada. A tradução é também uma arte performativa. Durante as sessões reparávamos muitas vezes no burburinho das múltiplas traduções que se alastravam entre os participantes. O tempo da tradução, essa suspensão em que ficamos a ouvir as mesmas palavras noutro idioma, é um tempo para deixar entrar pelos nossos ouvidos a beleza de uma língua incompreensível. No BOWING BACK a tradução entrou como dispositivo performativo. No último andar do edifício do Novo SEF havia quartos em que jovens migrantes contavam histórias. O Manuel e o Milan faziam um jogo de tradução entre o português e o nepalês. No quarto do Daniel, dentro de um armário, ouvia-se uma história sussurrada em quatro línguas em simultâneo. No quarto da Laxmi ela falava em português e no final dizia: "Agora, eu vou contar esta história em nepalês, e vocês vão perceber."
Fotografias de: João Mariano - 1000 Olhos