“Chamo-me Odete Rodrigues, é assim que sou conhecida profissionalmente. Entre os amigos e família sou a Cristina. Tenho 50 anos, três filhos já crescidos, uma cadela e um cágado. Sou casada. Dou aulas de matemática há 27 anos e estou em Odemira há 25 anos. Quando tirei o curso julgava que ia andar de um lado para o outro como a maior parte dos professores, mas o destino assim quis que ficasse em Odemira.”
Conhecemos a Cristina no início de 2022, quando veio a uma sessão no Cineteatro Camacho Costa, em Odemira, porque tinha visto o espectáculo do ano anterior e queria experimentar juntar-se ao grupo. Havia apenas homens migrantes, a Cristina era a única portuguesa e a única mulher. Falava pouco inglês. Continuou a vir regularmente ao longo do ano e as relações foram crescendo.
“A migração e a vinda de novas pessoas para este território não é uma coisa de agora. Antes desta população tivemos também outros migrantes a chegar, vindos do norte da Europa, assim como todos os técnicos, professores e enfermeiros que vinham de outros lugares de Portugal. Nunca foi fácil esta chegada. As pessoas não recebem de braços abertos e o primeiro impacto é difícil, mas com tempo vamos ocupando o espaço e vão-se abrindo caminhos de comunicação. Os que chegam adaptam-se à forma de estar e os que recebem também acabam por perceber o que de bom veio. Leva tempo.”
Cristina vive em Boavista dos Pinheiros e oferecia muitas vezes boleia a outros participantes para os ensaios e sessões. No início dizia que não dançava, não cantava, que seria incapaz de vestir um sari por timidez, por receio de ser mal-interpretada. Mas assim aconteceu meses depois, no espectáculo em que participou na vila de Odemira.
“O projeto BOWING veio fazer isso mesmo, veio misturar as “tintas” e por onde passou deixou rasto. Isto vê-se nas ruas, viu-se no espectáculo e vê-se nas escolas. Eu vejo que, na escola, quem passou pelo BOWING e quem viu o espectáculo tem uma forma de estar diferente e isso contagia os outros. Percebe-se que há uma abertura, uma mudança e aproximação.”
A Cristina partilhou connosco que, apesar de haver uma grande dificuldade de integração e um longo caminho a percorrer, via também novos relacionamentos entre culturas contrastantes.
“As acções e projectos com a natureza do BOWING fazem sentido dentro e fora das escolas. As artes são espaços que resolvem, de certo modo, a falta de conhecimento da língua num primeiro ano. A escola deveria preencher o horário dos alunos migrantes com actividades alternativas em que se trabalha a integração, o acesso e exposição ao Português e o bem-estar destes alunos. Sentem-se perdidos quando chegam e não há responsáveis ou estratégias específicas de acolhimento. Como professora, tenho feito pressão para que se cumpram estratégias de acolhimento e integração. As pequenas mudanças são já tardias, deveriam ter sido feitas há muitos anos. As leis que existem foram criadas para responder às necessidades desses tempos e infelizmente não foram aplicadas. As exigências são maiores agora e por isso é necessário remodelar estas leis, que estão longe de estar no seu lugar. No entanto, toda a pressão que se faz vai traçando um caminho. O que é importante é que as escolas tenham estratégias focadas no aspecto da integração e que acima de tudo se ponham as leis em prática. Temos de passar do falar ao fazer. Tive o prazer de ver o primeiro espectáculo do BOWING, em São Teotónio. O início entrou em mim de uma forma muito acentuada. Começava com uma meditação entre o elenco e o público, de olhos fechados, que era seguida de um momento em que duas bailarinas dançavam no topo de uma casa, o que nos obrigava a olhar para o céu. Todo o espectáculo nos levava a tirar os olhos do chão, a olhar para cima, ao redor, para todos os cantos daquela vila. Em cada esquina, cada muro velho, cada porta ou janela, em cada praça havia algo artístico a acontecer. Temos a tendência para passar a vida a olhar o chão, com medo de cair, fechados em pensamentos, a evitar olhar para quem está ao nosso lado. Naquelas três horas fomos convidados a olhar em volta. Fiquei com aquele gosto, aqueles cheiros e imagens. Percebi que era um espaço onde eu poderia dialogar e ajudar de alguma maneira a comunidade a falar Português, que é um passo extremamente importante. A comunidade migrante precisa dessa ajuda. Em 2022 liguei-vos e não hesitei em aparecer nas sessões.”
Lembramo-nos de uma tarde em que estávamos no Mercado de Odemira, com homens do Punjab, Bangladesh, Nepal e com a Cristina, todos sentados à volta de uma mesa a discutir o nome de peças de roupa em diferentes línguas. A Cristina estava sentada entre dois homens do Punjab: Gagan e Gurpreet. Conversavam os três, gesticulavam e respondiam sem falar a língua do outro. A Cristina, confiante, com o seu pequeno corpo entre dois homens volumosos, explicava muitas coisas em Português como se os homens entendessem, e eles respondiam, com toda a certeza, em Punjabi.
“A vossa forma de estar, de olhar, de comunicar unia, só por si. Cada dia que me juntava a vocês era uma descoberta na forma de ensinar. Aprendi sobre a forma de me relacionar com os meus alunos. Vocês conseguiram criar um espaço em que todos nos sentíamos iguais. Cada um dentro da sua diferença, tendo a consciência das histórias individuais e do valor dessa partilha. Descobri imenso sobre as pessoas e as várias culturas e tive o espaço para partilhar a minha história também. Fosse a primeira vez ou a décima vez que se chegava àquela sala, sentíamo-nos em casa.”