São duas palavras inevitáveis em qualquer projecto desta natureza. E ainda bem, pois constituem peças essenciais de motores de acção que provocam mudanças e ajustamentos nas dinâmicas existentes. Houve situações em que, porém, erros cometidos e desconforto gerado levaram a grandes questionamentos. O projecto carrega isso na sua história, como qualquer vida em comum. Os primeiros desconfortos surgiram no embate entre a nossa cultura portuguesa e as culturas dos participantes migrantes. Levou tempo até que a equipa se sentisse confortável no trabalho de dança, criação conjunta, sendo uma equipa feminina entre homens cujas histórias não se conheciam. Esse sentimento foi dissipado pela relação que tomou o seu lugar. Houve receio misturado com preconceitos naturalmente. Esse medo do outro, do mundo do outro, só é dissipado com o tempo que fará o seu trabalho. Neste momento, a equipa sente-se bem nas casas de famílias do Nepal, homens do Punjab e templos Sikh. No primeiro espectáculo BOWING, os adolescentes (especialmente as raparigas), queixaram-se de que eram maltratados por alguns adultos que também participavam. Eram insultados, provocados e até agredidos. Como falavam hindi e punjabi entre si, a equipa não se apercebeu desta dinâmica até que, um por um, dias antes da estreia, os jovens começaram a desistir do projecto. Fomos então às suas escolas, conversámos e percebemos o que se passava. Falámos com os homens envolvidos e pedimos que não regressassem aos ensaios. Todos os adolescentes voltaram e participaram no espectáculo. Certas famílias do Punjab trazem consigo rivalidades antigas e culturais, estando de repente a viver no Alentejo a poucos quilómetros de distância. Essas tensões também aconteceram dentro do projecto. No primeiro ensaio para o espectáculo BOWING, a famosa Noite da Babilónia, vieram várias famílias com bebés, crianças e mulheres, aparecendo também vários homens alcoolizados. As mulheres, perante esse cenário, não regressaram aos ensaios e nesse ano não se juntaram ao elenco. Mesmo no ano seguinte foi difícil a sua participação, sendo ainda uma questão importante que a equipa não resolveu por inteiro. O BOWING foi um projecto que inundou as nossas vidas, apagando as fronteiras entre o trabalho, as relações pessoais, os afectos. Foi uma vida por si só. Entre a equipa também isso se notou, as relações profissionais passaram a amizades, romances, laços profundos com os participantes, mas também tristezas, erros, zonas sensíveis de aproximação e afastamento. A complexidade deste projecto é a complexidade da vida, com todos os seus erros, desconfortos e milagres. O tempo continua a trabalhar. É difícil falar das falhas, especialmente as humanas. E várias continuarão com toda a equipa mas, quanto mais se partilhar, mais oportunidades haverá para se transformarem. A exposição traz consigo um risco. Saber que, algures, esse risco irá concretizar-se. Mergulhar num projecto artístico com uma grande comunidade migrante implica aceitar os desconfortos por vir, prepararmo-nos para todos os erros que cometeremos e que ainda não podemos conhecer. Acima de tudo saber que, mesmo assim, valerá a pena.