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Atravessar o Estrangeiro

Quando nos deparamos com uma cultura desconhecida, muito diferente da nossa, pode ser avassalador o sentimento que se gera face a esse universo obscuro. Não sabemos por onde começar. Faltam ferramentas de comunicação, de como saber estar no meio de outros costumes. Pode ser hostil, intimidante, demasiado grande para abarcar ao longo de um projecto, ao longo de uma vida. Qualquer primeiro passo é um bom passo. Entramos e seguimos os inúmeros fios dessas culturas, que em certos pontos se entrelaçam e começam a formar um mapa, sempre com falhas, sempre incompleto, mas que é motivado pela curiosidade e pelo desejo de partilha. Pedimos que nos ensinem línguas, músicas, danças, que nos mostrem filmes e imagens, que nos falem das suas vidas aqui e nos seus países. Ao longo do tempo, muitas vezes sem nos darmos conta, o que é estranho passa a familiar sem nunca, no entanto, ser apreendido na sua totalidade. Atravessar o Estrangeiro é, essencialmente, passar tempo com aquilo que é diferente de nós. Lembramo-nos, no início do projecto, de nos sentirmos intimidadas, desconfortáveis nas sessões que dávamos a muitos homens asiáticos nas estufas. Não sabíamos estar rodeadas de turbantes, de olhares incompreensíveis, de manifestações ambíguas e comunicação difícil. Neste momento, quando nos cruzamos na rua com homens do Punjab, do Paquistão, do Nepal, sentimos uma familiaridade confortável. Não nos lembramos do momento em que se deu essa mudança, ela vai-se dando ao longo do tempo. Atravessar o Estrangeiro é, mais que transformar quem encontramos pelo caminho, sermos transformadas por esses estranhos. Requer tempo e energia. É uma habituação à estranheza do outro, da sua cultura, do seu pensamento, forma de viver, sem esquecer as diferenças entre nós mas vendo-as como pontos de encontro e não de afastamento. O espectáculo é o resultado dessa travessia. Não poderia existir se não nos aventurássemos, se não nos abríssemos a novas práticas, novas estéticas presentes em todos os lados, em todas as pessoas envolvidas, em todos os sentidos. Atravessar o estrangeiro é lançarmo-nos pelo desconhecido sem esquecer de onde viemos. No livro Radical Hospitality: From Thought to Action, que serviu de inspiração à criação do primeiro espectáculo BOWING, o filósofo Richard Kearney propõe um equilíbrio entre aquilo que é estranho e aquilo que é familiar, um campo justo em que co-existe uma noção válida de identidade e estranheza: "Don’t let the foreign become too foreign, or the familiar too familiar." Atravessar o Estrangeiro é ter curiosidade e atenção por aquilo que ainda não está visível. É começar a caminhar numa direcção sem ter ainda pistas sobre o destino. É avançar por culturas que nunca explorámos, sem as tentar transformar ou subverter, mas com a abertura para que elas nos transformem, e quando há esse toque, esse contacto, também o estrangeiro será transformado. A relação é sempre recíproca. É essa abertura, essa curiosidade pelo universo do outro que até então nunca se cruzara com o nosso, que permitirá que culturas distintas colaborem numa construção que está entre elas, que pertence a toda a gente e a ninguém.